Descoberto em arrumações de computador, das coisas que nos inspiram:
Brasil, Rio de Janeiro, Julho de 2013.
Brasil, Rio de Janeiro, Julho de 2013.
O que dizer deste rio
de mar de gente de Rio?
Da minha janela vê-se o corcovado, o redentor que lindo.
Pela minha janela, entram sons de helicópteros, todas as noites,
sons de gente que janta, sons de aviões que pousam, cigarras à desgarrada.
Estes barulhos embalam, colocam-nos no mundo, fazendo-nos sentir o nosso centro de gravidade. Eu adormeço sempre em paz, descansada por isso mesmo. Porque o meu centro de gravidade adormece cheio de vida, cheio de cansaços, cheio de imagens.
No entanto ontem lá fora tiros, sirenes, helicópteros.
Não consigo parar de beber o suco de goiaba fresquinho e light, tira do frigorífico, põe no frigorífico, como se faltasse isso para sentir o sabor do Rio, no Rio.
A preparar as apresentações, os trabalhos os dizeres e os escreveres, paro. E penso.
Da minha janela vê-se o Corcovado, o Redentor que lindo. Lá em cima,
indiferente ao barulho constante dos carros que passam. Todo o dia a toda a
hora. Nem pensa em dormir este Rio.
De manhã vou correr com os demais, para o calçadão, ao longo da praia e cada passo eu penso: estou a correr no calçadão ao longo da praia, e a praia que é tão linda e o calçadão e o redentor que lindo.
Suco de goiaba fresquinho e light.
O Rio são vários rios. Centro, Botafogo, Copacabana, Ipanema, Leblon e Barra. Em sucessão de composições complexas.
Todo o dia de autocarro em tremedeira treme. Treme tremedeira, em
corrida com todos os outros carros, autocarros, táxis. Claramente o nosso
ônibus é sempre o melhor, ultrapassa todos.
E as favelas que entram pela cidade dentro como se alguém com uma retroescavadora
tivesse arrastado um grande bairro de casas pequenas que acabou por ficar ali
porque já não podia avançar mais, todo encolhido, enrugado, casas
encavalitadas.
No Rio o sol acaricia a pele como em nenhum outro lugar onde estive.
Acaricia mesmo. E a gente fica ali, nem mexe.
O lugar do evento fica perto de uma bela praia mas isolado do resto da
verdadeira cidade. Como se alguém tivesse pintado um quadro bonito e
perfeitinho do Rio. É lá que os visitantes serão colocados. Eu não, eu fico em
casa da Aparecida, muito mais barato e simpático.
Em todos os restantes quadrantes o bulício é enorme, a confusão
tremenda, a intensidade é toda intensa, em todo o lado.
Ficar em casa de uma brasileira foi uma bênção. Andar de metro, andar
de ónibus como os demais, comprar a fruta e até arranjar a unha.
O chope, o pastelinho. Lanchonetes por todo o lado. O guaraná, o
pastelinho, e tal.
A frase primeiro ‘estranha-se depois entranha-se’ ganha aqui um
significado especial, é mais implacável, violenta, matadora. Primeiro
estranha-se.
Depois a cidade absorve-nos como uma onda do mar.
Simplificação: falar português do Brasil. Sim facilita. Por exemplo bilhete de
metro não entra na máquina. É virar imediatamente para trás e perguntar: ‘como
é que funciôna esse treco?’ É escusado falar português de Portugal porque isso
só demora a fila, atrapalha muito.
Ainda sinto a
tremedeira do ônibus no corpo. Amanhã há mais.
Está-me a faltar a música, ainda não ouvi batuque. Talvez amanhã. Sim, falta isso.
No primeiro impacte pensamos: este lugar carece de limpeza e ordenamento.
Mas à medida que o tempo passa o Rio lá encontra forma de nos dizer que tem de
ser assim, foi assim, o Rio é assim.
Amanhã irei de novo
para o jogging. Cada passo penso:
estou a correr na Baia estou a correr no Rio.
O Rio por vezes feio
e desordenado é uma cidade com vida própria.
Tenho de ir buscar
mais um suco fresquinho e light.
Vou continuar a
preparar a falação.
Passado outro dia já não dá grande vontade de escrever sobre o Rio
porque se mergulhou nele…
Hoje teve muito de tudo. Subimos ao corcovado e fizemos a mesma figura
que todos, clique, clique, de máquinas a disparar.
Toda a zona em torno da estátua parecia uma nave cheia de gente pisca
pisca e gesticula e faz pose, pronta a descolar. Mas não descolava.
Os condores por cima das nossas cabeças voavam em círculos perfeitos. E
olhavam descaradamente para os nossos cocurutos. Pareciam dizer uns para os
outros, olha aquele ali, dá-lhe uma bicada.
E o bondinho que até lá subiu, tchk tchk. E o guia que dizia ‘ió are
góinge to see a landsecaipe ‘uôu’. ‘Itese ina fio minotees.’
E todos nós,
ordeiramente fizemos a ‘uôu’, em homenagem a uma paisagem absolutamente louca.
Lá em cima a sensação foi a de negativo. Toda a vida a imagem do Cristo
do rio de Janeiro no nosso sistema de referências, nós cá e ele lá, nós em
baixo e ele em cima, foi o positivo. Hoje foi o negativo dessa imagem. Agora
estamos cá, e? Fica a imensa paisagem, de tirar o fôlego e o comentário,
simplesmente para olhar, deslumbrante. E as centenas de pessoas a fotografarem
a imensa e linda cidade, thckik thcki.
Depois descemos, a pé, e abandonamos o autocarro por largas horas. Como
se subir ao monte fosse o baptismo de voo sobre o Rio, de e para o Rio.
Descemos e voltámos a subir para ir ao antigo largo do Boticário, agora
abandonado, com as grandes pedras do chão, pé de moleque. Ainda fomos ao museu Arte Naïf do Brasil, e embora nenhum quadro da Frida Kahlo estivesse por ali,
era como se espreitasse em cada canto, em cada bocadinho. Paredes que contavam histórias, a história no
Brasil, cheia de Portugal antigo.
Depois disto descemos as Laranjeiras, sempre a pé e aí sim, estávamos
finalmente dentro do Rio. Virámos para o largo Glicério e tinha uma feirinha,
excelente para passear, e água de cocô.
Aí experimentei o melhor da viagem, de tudo. Uma rodinha de choro,
composta por velhotes de ar tisnado e sabedoria musical nos dedos, que
orgulhosamente apresentaram a sua coqueluche: uma menina novinha, inglesa, que
para ali foi estudar música e que por lá ficou. Tocava o clarinete, instrumento
que dá um toque especial na roda. Todos os sons transpiram Rio e não sei se da
caipirinha que me colocaram nas mãos, mas as lágrimas escorreram cara abaixo,
deixando finalmente sair a emoção de tanta emoção. Estou no Rio, de caipirinha
na mão, a ouvir uma roda de choro, é Sábado à tarde e hoje posso não ir
trabalhar.
Finalmente chegou o resto da comitiva de portugueses e subimos ao morro
para comer feijoada na tasca. Era em Santa Teresa, bairro. Tarde de Sábado a
comer feijoada e a beber chope. Depois, já lusco-fusco subir ao cimo do monte
estrada deserta acima para ver o Rio, do lado de Botafogo. Mais muito ‘uôs’, e ‘uaus’
e picadelas de mosquito descemos de novo e lá fomos para a nossa casinha eu
para a minha e eles para a deles.
Na minha chegada tinha sempre uma conversa de uma hora com a Aparecida sobre
as linhas de autocarro que devia apanhar. Verificar linhas de autocarro é uma
dor de cabeça. Será dos sistemas de ônibus mais complexos do mundo, com
autocarros que mudam de rota a todo o instante, paragens provisórias só para
determinadas linhas, inversões de sentido e disto e daquilo. Um must deste
intrincado é o Frescão. O Frescão é um autocarro com ar condicionado. Todos os
autocarros andam a grande velocidade. Todos têm estampado atrás um número para
o qual devemos ligar para fazer queixa do motorista. Lá dentro o torniquete
aperta a barriga dos mais gorditos, mas têm de passar, dê lá por onde der.
Aliás eu acho que o torniquete não é para impedir assaltantes de atacar o
motorista e sequestrar o autocarro. É um incentivo ao emagrecimento da
população.
Nesta altura, depois de loucas viagens de autocarro e mais uma e mais
outra, o Rio já se entranhou debaixo da pele.
No dia seguinte, Domingo, o início da conferência para os
investigadores mais novos. Aproveitámos e fomos ver como era, levantámos os
papéis a aproveitámos o fresquinho do hotel para trabalhar, preparar falação etc.
Lá fora o sol chamava
e então fomos até Ipanema (era de lá que ele chamava) à feirinha.
Vimos e cheirámos, arte e sabores e depois o mergulho (estou a
mergulhar em Ipanema, estou a mergulhar em Ipanema). Comi um maravilhoso bolo
de mandioca com côco que durou horas a digerir.
Incrível país este onde, segundo os Brasileiros estão em pleno Inverno.
A praia cheia, havaiana no pé siricoli, siricolé. Pleno Inverno, viu?
Hoje a coisa esfriou. Levantar 6 da manhã para fazer duas horas de
caminho até ao local da conferência. Amanhã terão de ser cinco, pois apresento
às 8 e meia.
Seja como for acordo sempre às 4 da manhã com o barulho do tráfego. O
barulho infernal do tráfego que começa bem cedo, para que as pessoas se passam
espalhar em trajetos de casa-emprego pela cidade gigantesca. Tudo começa mais
cedo mas nem por isso acaba mais cedo. A hora de ponta é quase permanente.
Hoje 8 da manhã já
estávamos lá.
O resto do dia foi
blá blá,blá etc….conferência.
E percebi porque é que a conferência foi colocada naquele hotel. Uma
forma de evitar a tentação de colocar o pé fora. Ainda assim a barra e o mar do
outro lado da estrada.
O segundo mergulho está programado para aquele local na despedida (não
chegou a acontecer).
Hoje no regresso da
conferência, já tarde, foi preciso taxista.
Muito simpático.
Fiquei a saber: que na Rocinha - a favela onde passamos todos os dias de autocarro - há três delegações de bancos, uma rede de casas de eletrodomésticos etc.. etc e nunca foram assaltadas. As coisas estão a mudar.
Incrível a imagem à noite, favela que se espraia da encosta cá para baixo.
Fiquei a saber: que na Rocinha - a favela onde passamos todos os dias de autocarro - há três delegações de bancos, uma rede de casas de eletrodomésticos etc.. etc e nunca foram assaltadas. As coisas estão a mudar.
Incrível a imagem à noite, favela que se espraia da encosta cá para baixo.
Sempre que falamos com brasileiros sobre portugueses não dizem o que
pensam de pior, é claro, mas o que pensam de positivo. Parece que a nossa maior
qualidade e simpatia ao longo dos tempos é a nossa capacidade para o amor. ‘Os
portugueses fabricaram a mulher brasileira, com uma gotinha de cada cor e que é
tipo (fazendo o gesto ondulante e deslizante com a mão) ‘vai do corcovado ao
pão de açúcar’, analogia da planície e dos morros com o corpo.
E lá continuou o taxista:
‘Os portugueses gostam é de – ‘chega para cá o teu pedaço que eu quero-te
contar uma história’
Como colonizadores,
muita asneira mas muito amor também, sempre.
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